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Championship de sangue frio


     Se for adepto do Championship, um dos campeonatos mais competitivos do futebol mundial, é bem provável que se depare, pelo menos, com um jogador escandinavo em cada partida que assistir. Na verdade, das 24 equipas que constituem o segundo escalão do futebol inglês, 17 formações têm um jogador nórdico no seu plantel, seja ele preponderante para a equipa, uma jovem promessa ou um jogador utilizado primordialmente na equipa de reservas, seja para recuperar de lesão ou ambientar-se ao futebol britânico. Independentemente da sua utilização dentro da equipa que represente, e somando o total das 24 equipas presentes no EFL Championship, regista-se um bizarro número de 32 nórdicos, com uma média de 1,33 por equipa. Na Premier League o número total fica nos 13. Porquê a tamanha afluência de jogadores finlandeses, dinamarqueses, noruegueses, suecos e islandeses no segundo escalão do futebol inglês? 

A Crónica Futebolística, nesta peça de Luís Barreira, irá expor alguns fatores que ajudam a compreender e assimilar os factos acima escritos de forma clara.

**A ter em conta que neste artigo é utilizado o termo mais amplo de "Escandinávia", incluindo a Finlândia, Islândia e, embora não tenha qualquer representante, as Ilhas Faroé.

     Embora os estereótipos que por tanto tempo circundaram o típico jogador nórdico estejam a dissipar-se de forma lenta, mas gradual, existe uma ideia base daquele que é o jogador escandinavo: louro, alto, fisicamente imponente e tecnicamente débil. E o rótulo mais fácil de desmentir, destes 4 mencionados, é sem dúvida o último. Mas, claro há exceções. Nem todos são louros, também. É preciso ter, em primeiro lugar e antes de tudo, uma ideia base de como funcionam os campeonatos escandinavos e onde se situam em termos de qualidade e mediatismo.

     Como é provavelmente do conhecimento geral, os campeonatos nórdicos não estão em par com as competições de 1ª e 2ª linha do futebol europeu (entenda-se por 1ª linha o campeonato espanhol, inglês, alemão, italiano e apesar dos fracos rendimentos europeus a própria liga francesa, com a 2ª linha encabeçada pelos campeonatos de Portugal, Holanda ou Rússia). Claro, necessário referir que não o estão porque, além de não terem qualidade para competir com a elite do futebol europeu, não têm os recursos financeiros nem o prestígio internacional para tal. Porém, como é apanágio da cultura escandinava, os recursos existentes são aproveitados das formas mais rentáveis, quer para consumo interno quer na promoção do atleta da casa, como mostra a migração de jogadores para o Championship.

     Embora não tenham níveis de futebol ou assistências como os tubarões da Europa, é necessário salientar que os campeonatos nórdicos (nomeadamente Dinamarca e Suécia, em maior nível) são erradamente vulgarizados e muitas vezes inferiorizados em relação à sua real qualidade, certamente respeitável. Essa subvalorização das ligas, das suas equipas e atletas constitui um dos pontos mais importantes desta peça que será explorado mais à frente. A exploração - ou falta dela, neste caso - por parte de (ainda mais) poderosos mercados europeus faz com que as equipas do Championship tenham via verde para explorar não só o talento que cresce nos próprios países nórdicos, mas também adquirir as suas maiores promessas espalhadas pelo futebol europeu. Juntando a já referida subvalorização das competições à falta de exploração e atenção de grande parte da Europa do futebol face ao produto escandinavo, juntam-se todas as condições e mais algumas para parte do talento incorporado rumar, justamente, a Inglaterra.

     ➦ BAIXOS VALORES DE MERCADO

          Tão simples quanto a lei da oferta e da procura. Se há pouca oferta e muita procura, os preços são naturalmente inflacionados. Se a situação se inverte e a oferta é maior do que a procura, naturalmente o valor de mercado irá cair, favorecendo eventualmente o comprador. Esta, juntando à subvalorização dos campeonatos escandinavos e ao impressionante poderio financeiro da maior parte das equipas do Championship, é uma das melhores formas de ilustrar a posição do mercado escandinavo face, neste caso em particular, ao 2º escalão do futebol inglês. Com esta tendência a dissipar-se cada vez mais e o futebolista nórdico a ser cada vez mais valorizado, ainda existe uma lacuna considerável entre a oferta. Clubes como o Midtjylland, Brondby ou mesmo o Copenhaga - utilizado o caso da Superliga dinamarquesa - têm de, ocasionalmente, vender os seus maiores e mais valiosos talentos para se conseguirem sustentar financeiramente de forma mais tranquila. Muitas vezes com uma observação deficitária tendo em conta o talento existente no país em questão, o destino destes mesmos jogadores cada vez mais parece passar por Inglaterra e, face à falta de competitividade no mercado, a preços relativamente acessíveis. E porquê Inglaterra? O que nos leva ao segundo ponto.

     Embora o seu destino não passe por Inglaterra, a transferência de Thomas Delaney do Copenhaga para o Werder Bremen ilustra muito bem este ponto. Com 25 anos, o atual capitão, motor do meio-campo e fonte de carisma dos dinamarqueses - e cada vez da seleção, onde é presença incontestável - irá rumar ao futebol alemão pela mera quantia de 2 milhões de euros. E valor classificado por "mera quantia" devido ao seu talento e versatilidade notáveis, sendo que num campeonato ou equipa de maior prestígio o valor acima não constituiria, muito provavelmente, nem metade do montante da sua transferência.

     ➦ SEMELHANÇAS NO ESTILO DE JOGO

     Como já foi referido acima, o típico futebolista nórdico continua a evoluir em termos técnicos, com o caso mais evidente a surgir com a Islândia no EURO 2016. Apesar de ser uma equipa que recaia bastante no jogo aéreo e nos aspetos físicos do jogo, a formação de Lars Lägerback demonstrou uma impressionante fasquia técnica quando necessitou. O mesmo vai acontecendo um pouco por todos os países da Escandinávia, com jogadores - especialmente médios de características ofensivas - tecnicamente dotados. Apesar disso, os seus princípios mais primitivos continuam lá: a estatura, a presença física e a facilidade por vezes estonteante no jogo aéreo. E a verdade é que, de todos os campeonatos a nível mundial, existem poucos que requerem tamanha fisicalidade - seja no chão ou no ar - como o Championship.

     É elementar concluir, então, que se torne natural que um jogador escandinavo que reúna estas características se sinta na sua zona de conforto: o jogo aéreo, a presença física e a resistência são dos aspetos mais importantes para qualquer jogador do Championship e com um mercado amplo como o nórdico estranho seria as formações inglesas não tirarem proveito de jogadores que, com um valor de mercado relativamente acessível para o seu orçamento, cumpram com nota alta os pré-requisitos para atuar numa competição tão desgastante e exigente. Entre os mais de 30 jogadores escandinavos presentes neste campeonato, existem os que possuem uma qualidade técnica acima da média e, quando juntam essa mesma perícia ao seu porte físico, acabam por se tornar em verdadeiras referências. Veja-se, por exemplo, Stefan Johansen, médio norueguês do Fulham.

     ➦  ÖDEGAARD E A BUSCA PELO PRÓXIMO MENINO DE OURO

     Com o enorme Jussi Jääskelainen a representar o Wigan aos 41 anos, existem 5 jogadores com idades compreendidas entre os 17 e 21 anos a representar formações no Championship, seja pela equipa principal ou pela formação de reservas. Com o aparecimento e explosão de Martin Ödegaard em termos mediáticos antes e durante a sua chegada ao Real Madrid, o mercado nórdico sofreu um dos piques na sua popularidade no que aos últimos anos diz respeito, com os departamentos de observação de dezenas de clubes europeus a procurar a próxima pérola norueguesa ou, mais amplamente, escandinava. O caso mais evidente é o de Martin Samuelsen: tendo iniciado o seu percurso no futebol inglês em 2012, com 15 anos, o jovem de 19 pertence atualmente aos quadros do West Ham (pelo qual já jogou na Liga Europa) e está emprestado ao Blackburn Rovers, onde ainda procura um lugar no onze. Internacional norueguês desde o passado mês de março, Samuelsen teve inúmeros holofotes sobre si depois do aparecimento do seu compatriota no mundo do futebol, mas ainda não conseguiu capitalizar.

     A relevância dada a Ödegaard abriu portas a que, num raro período, toda a Europa do futebol se virasse à Escandinávia em busca do próximo menino de ouro. E para o Championship não foi diferente, sendo o jogador do Real Madrid um dos principais impulsionadores para que, ainda que talvez por um período demasiado breve, se observasse com maior atenção o mercado nórdico.

     ➦  RASMUS ANKERSEN, "THE GOLD MINE EFFECT"

     Autor de vários livros e considerado expert em alta performance no que ao futebol diz respeito, o dinamarquês Rasmus Ankersen é, aos 33 anos, presidente do Midtjylland e um dos diretores do futebol do Brentford FC. Apontando a este último cargo no verão de 2015, o antigo capitão dos sub-19 da equipa que agora preside (uma lesão terminou a sua carreira prematuramente) foi a principal influência para as contratações dos dinamarqueses Lasse Vibe e Andreas Bjelland por parte do Brentford no mesmo verão do ano passado. Embora este último vá vendo o seu tempo em Inglaterra marcado por problemas físicos, Lasse Vibe deu continuidade ao seu grande momento de forma pelo Gotemburgo, impressionando de forma gradual pelos ingleses. Apesar do sucesso como extremo, várias lesões no ataque fizeram com que tivesse de assumir o lugar de ponta-de-lança, onde sofreu muito pelo seu isolamento no terreno durante parte considerável da temporada. Ainda assim, sem lesões, Vibe carimbou exibições de enorme classe e terminou a temporada com 14 golos no Championship.

     Aparecendo tarde na ribalta (atualmente com 29 anos), a contratação e consequente prestação de Vibe no futebol inglês despertou muitos olhos de responsáveis do Championship ao mercado nórdico, quebrando de certo modo o estigma de que os avançados - neste caso dinamarqueses - nórdicos se baseiam na sua estatura, força e jogo aéreo para singrar no mundo do futebol. Extremamente ágil, rápido e brilhante com a bola nos pés, a contratação escolhida a dedo por Rasmus Ankersen ganhou muitos adeptos no Championship e consciencializou responsáveis do campeonato a apostar no mercado nórdico. O diretor técnico do Brentford é hoje considerado como uma das mentes mais promissoras do futebol por tudo aquilo que já alcançou aos 33 anos e pela sua perspetiva única sobre o desporto, como bem indicam as suas obras.

     ➦  TRADIÇÃO E HISTÓRIA NA PREMIER LEAGUE

     Com nomes como Christian Eriksen, Kasper Schmeichel, Gylfi Sigurdsson ou Jonas Olsson a cimentarem o seu estatuto na Premier League, cada um de forma diferente, as prestações destes e de antigos jogadores escandinavos na Premier League transmite uma determinada confiança e viabilidade às eventuais contratações por parte de equipas do Championship, quando visando o mercado nórdico. Embora o sucesso de uns não signifique o sucesso automático de outros (e nem todos os jogadores nórdicos no Championship vivem dias fáceis), a história destes jogadores na Premier League é certamente um ponto positivo.

     Figuras como Peter Schmeichel, Tore André Flo, Morten Pedersen, Fredrik Ljunberg, Olof Mellberg, Daniel Agger ou Thomas Sorensen marcaram gerações nos seus respetivos clubes (uns mais do que os outros, claro) e o sucesso destes e outros jogadores na Premier League é não só um ponto positivo, mas como também um ponto de referência às formações do Championship que procuram uma referência a médio-longo prazo. E não haverá melhor exemplo de que Aron Gunnarsson: o capitão islandês representa o Cardiff com unhas e dentes desde 2011, sendo ele um dos mais contagiantes e carismáticos líderes do Championship dentro de campo.

     ➦  FRIO, PRÁTICO E EFICAZ

     Juntando um pouco de tudo o que já se disse na peça, as contratações de jogadores nórdicos por parte de equipas do EFL Championship revelam-se extremamente práticas e eficazes na maior parte das ocasiões, com as equipas a não ter que abrir tanto os cordões à bolsa em comparação com um eventual investimento noutros mercados, mais explorados e reconhecidos a nível mundial. Juntando-se o útil ao agradável, estas contratações acabam por ser viáveis porque à partida, os clubes sabem o que estão a comprar: um jogador que, dadas as suas características, se adequa de forma ideal ao campeonato onde irá atuar. 

     A frieza, durabilidade e físico do jogador nórdico acaba por ser na maior parte das ocasiões o critério formado para contratar determinado atleta - com jogadores como Lasse Vibe a serem exceções. Num lote em que a figura mais facilmente reconhecível acaba por ser Nicklas Bendtner (que, tal como o próprio Nottingham, está a crescer), o Championship tem um elenco de luxo no que à Escandinávia diz respeito. E uma coisa é certa: estão no sítio certo. 

Luís Barreira,
Crónica Futebolística

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